Pesquisar este blog

Um pouco de história não faz mal a ninguém

A seguir, uma grande reportagem sobre ditadura e futebol. O mérito é de Ariel Palácios, do jornal "O Estado de São Paulo".
Vale a pena conhecermos um pouco do trágico período ditatorial que se espalhou pela América do Sul.
Neste caso específico, na Argentina.


21 de junho de 1978: Videla entra no vestiário dos jogadores peruanos e fala sobre ’solidariedade’










por Ariel Palácios










Solidariedade no vestiário, cuecas e ditadura. Polêmica sobre vitória argentina contra Peru continua gerando polêmica 32 anos depois. General Videla, na foto acima, considerava que vitória na Copa era crucial para imagem de seu regime.


“Irmãos latino-americanos!”. A voz metálica do general Jorge Rafael Videla, ditador argentino, ressoou dentro do vestiário da seleção peruana no estádio “El Gigante de Arroyito” em Rosario. Era o dia 21 de junho de 1978, há exatamente 32 anos. Os jogadores estavam vestindo-se para entrar no campo em dez minutos contra a seleção da Argentina. Alguns dos peruanos estavam de cuecas. “Não sabia se terminava de me vestir, o que poderia ser interpretado como falta de educação, ou parava o que estava fazendo e se o cumprimentava seminu”, relatou um dos jogadores ao colunista esportivo Ricardo Gotta, autor de “Fomos Campeões”, livro que analisa a polêmica Copa realizada na Argentina.


Na sequência, Videla, explicou Gotta ao Estado, “que era um especialista em toda demonstração mais ou menos explícita de intimidação”, discursou sobre a intensa“solidariedade” entre peruanos e argentinos.
Além da visita do homem mais poderoso da Argentina, que comandava uma sanguinária ditadura iniciada em 1976, que havia assassinado milhares de civis e espalhado centros de tortura clandestinos por todo o país, também estava no vestiário, em silêncio, o ex-Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, habitué das copas do mundo.
O recado estava dado. Segundo Gotta, vários jogadores sabiam que os militares argentinos poderiam assassiná-los depois do jogo, caso o Peru vencesse, e que colocariam a culpa do “atentado” em algum grupo guerrilheiro (a modalidade de colocar a culpa em algum grupo guerrilheiro era costumeira por parte da ditadura, quando era necessário eliminar alguém. Inclusive, era modalidade à qual se recorria para explicar a ocasional morte de um integrante incômodo do próprio regime militar). Diversos jogadores peruanos saíram ao campo tremendo de medo.


Poderoso e fanático pelo futebol: Henry Kissinger, mestre da diplomacia americana, foi com Videla ao vestiário dos jogadores peruanos (acima, Kissinger do outro lado do planeta, com Mao Tsé-Tung). Neste link do Youtube, trecho de uma entrevista com Oblitas e quando Videla, junto com Kissinger, entra no estádio, aqui.



Para a seleção argentina o jogo era crucial, pois precisava pelo menos emplacar quatro gols no arco opositor para conseguir a classificação para a final da Copa. Para o Peru, que já estava desclassificado, o jogo era uma despedida. Quando o juiz apitou o término do jogo, os argentinos tinham, além de realizado os gols necessários, também cometido outros dois adicionais.


O placar 6 a 0 gerou suspeitas mundiais. Gotta sustenta que “a Ditadura precisava chegar à final. E ganhar. Senão, teria sido um fracasso não somente esportivo, mas também político. O regime precisava a imagem de um país vencedor”.


Gotta duvida que o goleiro da seleção peruana, Ramón Quiroga (argentino de nascimento mas naturalizado peruano), fosse o responsável pela derrota. “Ele defendeu muitíssimos ataques argentinos. Ao redor de 13 a 15 jogadas que poderiam ter sido gol, mas não foram graças à sua habilidade. Mas, a presença dos argentinos perto do arco era constante”, diz. “Por isso, poderia suspeitar-se mais da atitude dos defensores peruanos (Jaime Duarte, Rodolfo Manso, Roberto Rojas e Héctor Chumpitaz), que cometeram muitos erros”, explica.


‘NÃO FOI NORMAL… FOI ESQUISITO’ - Carlos Del Frave, pesquisador esportivo da cidade de Rosario, ressalta um depoimento do jogador peruano Juan Carlos Oblitas, que indicou que “aquele jogo não foi normal…foi esquisito”.


Oblitas também destacou que a presença de Videla no vestuário “foi terrível…eu estava atrás de uma parede e ali fiquei. Não queria que isso interrompesse minha concentração”.


Ramón Quiroga, apesar dos gols, manteve boa imagem entre os peruanos, e nos anos posteriores tornou-se técnico de vários times. Em 2006 negou que ele ou seus pais (que residiam em Rosario na época do jogo, a poucos quarteirões do estádio) haviam sido ameaçados pela Ditadura. Os outros jogadores peruanos não exibiram sinais de riqueza nos anos seguintes à Copa. Um deles, Manso, empobrecido, emigrou para a Itália, onde trabalhou como caminhoneiro.


Pablo Llonto, autor do livro “A vergonha de todos”, não acredita em “jogo arranjado”:“investiguei todos os rumores sobre o jogo com o Peru. Ninguém tem provas. Mas, de todas formas será o mais longo de toda a História mundial. Nunca antes houve um jogo tão comentado como este, três décadas depois de ocorrido. Além disso, os rumores crescem com o tempo. Acho que foi um jogo que a seleção argentina venceu justamente”. 


 TEORIAS A GRANEL 


Se na política as teorias costumam ser abundantes, no futebol, elas superam qualquer limite de combinações. E, quando a política junta-se ao futebol, então temos uma miríade colossal de teorias, das mais realistas às mais mirabolantes.


Aqui reunimos um punhado, algumas das especulações que tornaram-se ao longo dos últimos anos os hits parade das teorias sobre o polêmico jogo Peru versus Argentina:


Teoria número 1 - Videla subornou o próprio governo peruano, comandado pelo general Francisco Morales Bermúdez, com um substancial carregamento de trigo argentino


Teoria número 2 – A Ditadura utilizou um narcotraficante colombiano, Fernando Rodríguez Mondragón como intermediário para realizar um milionário suborno à Federação Peruana de Futebol


Teoria número 3 - A Ditadura pagou US$ 50 mil a todos os jogadores peruanos


Teoria número 4 - A Ditadura pagou US$ 50 mil somente a alguns jogadores peruanos


Teoria número 5 - Os jogadores peruanos foram ameaçados de morte pela Ditadura


Teoria número 6 - Um defensor crucial, Manso, recebeu a proposta de jogar no Vélez Sarsfield, time portenho, em troca de amolecer a defesa


Teoria número 7 - Quiroga foi o único pressionado, pois sua família, que na época morava na Argentina, recebeu ameaças de morte da Ditadura argentina


Teoria número 8 - O futebol é “uma caixinha de surpresas, onde tudo pode acontecer”, isto é, a derrota peruana foi por causas puramente futebolísticas.

Videla celebra conquista da taça da FIFA, no estádio Monumental de Núñez



COPA DE 1978 FOI O APOGEU DA DITADURA


1978 foi um ano exuberante para a Ditadura Militar que governava a Argentina há dois anos. O país, em plena ciranda financeira, com dezenas de milhares de turistas argentinos dizendo “deme dos” (me dê dois) nas lojas no exterior, ufanava-se de contar com uma miss mundo, Silvana Suárez, eleita naquele ano; alardeavam o desempenho brilhante do tenista Guillermo Villas nas quadras – e como latin lover(pelo romance com Caroline de Mônaco) – enquanto Carlos Reutemann exibia uma performance de alto nível nas pistas da Fórmula Um.


Como se fosse pouco, a Argentina fazia pose de potência militar regional ao começar a desafiar o Chile à uma guerra pela disputa do Canal de Beagle. No mesmo ano, o país hospedava a Copa do Mundo de futebol. E, de  quebra, em 25 dias de torneio, arrebatava a taça Jules Rimet, para delírio de 25 milhões de argentinos.


Mas, ao mesmo tempo, o país acumulava mais de 20 mil desaparecidos políticos (seriam 30 mil até o final da Ditadura), entre eles velhos e crianças. Mais de 500 centros de detenção e tortura espalhavam-se todo o país. As notícias sobre a inflação, o estancamento industrial, a fragilidade do sistema financeiro, e os mega-escândalos de corrupção eram censuradas pelo regime.


As críticas à seleção estavam proibidas. Expressar um mero “porém” à seleção implicava em desaparecimento assegurado. O país, tal como ocorreria anos depois durante a Guerra das Malvinas (1982), estava ofuscado pelos triunfos.


Mas, com a volta da democracia, os argentinos começam a encarar a Copa de 1978 com visão crítica. Há dois anos, quando completaram-se os 30 anos daquele evento esportivo, organizações de defesa dos Direitos Humanos, políticos, intelectuais e jogadores de futebol realizaram diversas homenagens aos mortos da Ditadura ocorridas durante a Copa. Uma das cerimônias foi realizada no mesmo estádio onde ocorreu a final. Diversos livros sobre a sinistra Copa de 1978 foram lançados nos últimos anos. 


‘PATRIOTISMO ESPORTIVO’ - “A Copa de 1978 é o primeiro símbolo de aprovação em massa da Ditadura. O general Jorge Rafael Videla, ditador na época, foi aplaudido pela multidão em estádios repletos. O gasto desvairado na organização da Copa não foi questionado. As denúncias dos exilados e parentes dos desaparecidos foram encaradas como expressões de antipatriotismo”, explicou na ocasião ao Estadoo jornalista Pablo Llonto, autor do livro “A vergonha de todos”, onde disseca o fervor popular pelo evento no meio de um regime de terror.


Com a conquista da Copa do Mundo, o general Videla estava em seu ponto de máximo poder. No dia seguinte à final, uma multidão o ovacionou na Praça de Mayo, homenagem praticamente reservada até então aos presidentes civis.


Em 2002, durante uma entrevista, o último ditador do regime, o general Reynaldo Bignone (1982-83), declarou amargurado que a Ditadura havia cometido um grave erro naquela ocasião, momento em que a população estava descontroladamente eufórica:“se tivéssemos convocado eleições naquela hora, teríamos vencido. E ainda hoje estaríamos sendo aplaudidos”.


Grupos de esquerda, exilados e setores da população que sofriam a Ditadura estavam divididos sobre torcer a favor ou contra a seleção. Nas intensas discussões, uns setores alegavam que a vitória da seleção favoreceria a Ditadura. Outros, não pretendiam desprender-se do “patriotismo esportivo” e tentavam argumentar que“política e esportes não estão misturados”.


As famílias de desaparecidos também estavam divididas. Avós da Praça de Mayo, relatavam que enquanto estavam na cozinha chorando o desaparecimento de seus filhos e netos, os maridos, na sala, gritavam os gols.


ESMA, principal centro de torturas na cidade de Buenos Aires, a poucos quarteirões do estádio do River Plate, onde foi a final da Copa de 1978. ESMA, marcada com a letra A, Estádio Monumental de Núñez, com a letra B.


HURRAS E TORTURA – Há 32 anos, Graciela Daleo, atualmente catedrática de Direitos Humanos da Universidade de Buenos Aires, era uma ”desaparecida” da Ditadura, detida e torturada na Escola de Mecânica da Armada (ESMA). Desde sua cela - segundo me contou há dois anos, durante uma entrevista em sua casa - escutava os “hurras” da torcida argentina, a dez quarteirões dali, no estádio Monumental de Núñez, onde transcorria a final da Copa (o embate da seleção argentina contra a holandesa). Nas arquibancadas do estádio, poucos imaginariam que a mil metros dali funcionava o mais tenebroso centro de tortura do regime. Na ESMA estiveram presas 5 mil pessoas. Somente 140 sobreviveram.

“Quando ouvi gritos da torcida pela janela, pensei: se eles ganharam, nós perdemos”. Logo depois, um dos mais famosos torturadores, o capitão “Tigre” Acosta entrou na sala dos torturados, exultante: “ganhamos, ganhamos!”.

Sem explicações prévias, Daleo e outra prisioneira foram levadas por guardas para fora da cela e colocadas dentro de um carro onde estavam alguns oficiais. O automóvel saiu pelas ruas onde a multidão celebrava a vitória na Copa.

Daleo não podia acreditar: “Milhares de pessoas saíam de suas casas dançando e gritando de alegria. Sempre havia sonhado com essas multidões, mas celebrando uma revolução social, não uma vitória na Copa!”.

Olhando pela janela aberta do carro, Daleo chorou: “se gritasse que era uma desaparecida, quem daria bola?”


Depois do tour, os torturadores levaram a estupefata Daleo para insólito e bizarro jantar em uma churrascaria abarrotada de pessoas cantando jingles da Copa. Daleo sabia que dali voltaria à prisão e às sessões de tortura.


De volta à ESMA, foi colocada na cela. Nas ruas, os portenhos festejaram a vitória futebolística até o raiar do sol. “Desde aquele momento, não quero saber nada, absolutamente nada sobre as Copas!”, diz Daleo.

DE US$ 70 MILHÕES PARA US$ 700 MILHÕES - “Custará somente US$ 70 milhões”, havia prometido o almirante Emilio Massera ao general Videla sobre os gastos da Copa. Mas, o custo final foi de US$ 700 milhões. Os gastos foram criticados como “excessivos” pelo Secretário da Fazenda, Juan Alemann, um economista conservador de renome.


Como represália por suas declarações, segundos depois que a seleção argentina fez o quarto gol contra o Peru (um jogo que definiria a ida do país à final da Copa), uma bomba explodiu na frente da casa de Alemann.


A violência entre integrantes do próprio regime militar por divergências sobre a organização da Copa e a disputa dos fundos foi costumeira. O general Omar Actis, que presidia a entidade que organizaria a Copa, desejava um evento austero. O almirante Carlos Lacoste, vice-presidente da entidade, defendia uma Copa exuberante, com mais estádios e um canal de TV para transmitir a cores novo em folha.

As diferenças foram dissolvidas com o assassinato de Actis, cuja morte foi atribuída a grupos guerrilheiros (que na realidade já haviam sido dizimados). Seu substituto, o general Antonio Merlo, não se opôs ao aumento sideral de gastos desejado por Lacoste. O almirante, posteriormente, foi assessor de finanças da FIFA e seu vice-presidente.


Fonte: http://blogs.estadao.com.br/ariel-palacios/

Nenhum comentário:

Postar um comentário